Carta de Bento 16 expõe conflito de visões com Igreja de Francisco

O papa Francisco visitou novamente esta semana seu predecessor, o papa emérito Bento 16, para lhe desejar um feliz aniversário “com afeto particular”, numa demonstração já familiar de cordialidade.

Por trás da visita amistosa, contudo, uma discussão sobre conspirações e centros concorrentes de poder circula no Vaticano e fora dele. Na semana passada, Bento, que completou 92 anos na terça-feira (16), divulgou uma carta de 6.000 palavras em que expõe seu ponto de vista sobre as origens da crise de abuso sexual cometido por clérigos da Igreja Católica.

Com isso, ele concretamente enfraqueceu a posição de Francisco com relação a um problema altamente controverso que vem atormentando seu pontificado.

Para muitos especialistas na igreja, a carta de Bento representou o exemplo mais recente e notório de como a existência concomitante de dois papas pode causar tanta confusão entre os fiéis —dois pontífices cujas residências distam apenas algumas centenas de metros uma da outra, mas cujo estilo, pensamento e visões sobre a Igreja não poderiam ser mais diferentes.

Que fique claro: Francisco é o papa e é quem comanda a Igreja. É ele quem pode promulgar o dogma e cujos pronunciamentos papais, quando ele se posiciona “ex cathedra” (com a autoridade de seu cargo) sobre questões de fé e moral, são considerados infalíveis. Bento abriu mão de tudo isso quando renunciou ao papado, inclusive à infalibilidade.

“O que está acontecendo hoje é o que muitos de nós esperávamos que não acontecesse”, comentou Massimo Faggioli, professor de teologia e estudos religiosos na Universidade Villanova. Ele defende Francisco. “A ideia de um pontificado duplo é profundamente conturbadora.”

De fato, em vez de propor soluções concretas para remediar o flagelo do abuso sexual na igreja, a carta de Bento voltou a agitar o Vaticano, sempre uma espécie de corte real que fervilha de fofocas e intrigas, com novos rumores sobre uma rivalidade.

São crescentes, especificamente, as especulações de que Bento estaria sendo usado como pretexto por adversários ideológicos conservadores de Francisco, cuja abordagem mais pastoral, inclusiva e menos dogmática eles veem como sendo destrutiva.

Também se está discutindo se os subalternos de Francisco teriam impedido a carta de Bento de ser entregue aos líderes da igreja reunidos em fevereiro para uma cúpula inusitada sobre o abuso sexual na Igreja.

Em 2013, quando Bento tornou-se o primeiro pontífice a renunciar ao papado desde Gregório 12, em 1415, sua promessa de que se manteria “escondido do mundo” parecer uma garantia de que ele não sairia de seu convento no Vaticano e que não constituiria qualquer obstáculo a seu sucessor.

Mas não tem sido sempre esse o caso, concretizando o que estudiosos e fiéis temiam que se convertesse em um cenário potencialmente catastrófico para uma igreja moderna já rachada por divisões ideológicas e pouco preparada para as tempestades da comunicação em tempo real da era das redes sociais.

Quando Bento renunciou, não ficou claro que título ele se atribuiria. Como o papa é também o bispo de Roma, alguns teólogos sugeriram que ele se qualificasse como o “bispo emérito de Roma”, para deixar claro que havia apenas um papa de cada vez.

Mas mesmo antes do conclave que elegeria Francisco, Bento anunciou que assumiria o título de “papa emérito”. A escolha deixou perplexos seus críticos e até mesmo alguns de seus defensores.

O arcebispo Rino Fisichella, respeitado teólogo do Vaticano que assessorou Bento e dirige o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, criado por Bento, disse em 2017 que respeita a escolha do ex-pontífice mas que não usaria o título.

“Teologicamente falando, esse título cria mais problemas do que os que resolve”, ele explicou.

A carta de Bento, escrita com o intuito de servir de subsídio para a cúpula de fevereiro sobre abuso sexual, constitui o exemplo mais recente disso. Bento propôs o que muitos teólogos enxergaram como uma análise embaraçosa da crise de pedofilia na igreja, atribuindo-a à liberdade sexual dos anos 1960.

Já Francisco, em vez disso, em várias ocasiões já atribuiu a crise ao clericalismo, um abuso sistêmico de poder e a busca doentia de autoridade dentro da hierarquia da igreja.

Bento, porém, argumentou em sua carta que a “liberdade sexual total” provocou um “colapso mental” que ele vinculou a “uma propensão à violência”.

“É por isso que filmes com teor sexual foram proibidos em aviões”, prosseguiu Bento. “Porque a violência poderia irromper entre a pequena comunidade de passageiros.”

O arcebispo Georg Gänswein, secretário pessoal de Bento por anos e também prefeito da residência papal sob o papa Francisco, confirmou que Bento escreveu a carta “inteiramente por conta própria”.

Bento conserva influência enorme, especialmente pelo fato de ter sido o teólogo dominante da Igreja por mais de três décadas, primeiro como guardião doutrinal de João Paulo 2º e depois como papa. Ele conta com a plena lealdade dos tradicionalistas que sempre defendeu.

Entre alguns dos formados por seus ensinamentos e elevados por ele na hierarquia da igreja, as palavras de Bento carregam importância ainda maior que as de Francisco, jesuíta cuja tendência a fazer pronunciamentos de improviso e cujo pendor por priorizar a inclusividade pastoral em detrimento da doutrina os enfurece.

“Em seu texto breve, Ratzinger tem momentos de insight e genialidade que são como uma chuva caindo no deserto, especialmente hoje”, escreveu o arcebispo de Filadélfia Charles J. Chaput, conservador destacado que frequentemente discorda do papa Francisco. Chaput acrescentou que, diante de tanta erosão moral, “a boa notícia é que alguns de nossos líderes ainda têm a coragem de falar a verdade.”

O cardeal Gerhard Müller, que Bento ungiu o guardião doutrinal da igreja e Francisco posteriormente afastou do cargo, também saudou a carta de Bento como sendo uma expressão de bom senso.

“Eles saudaram a mensagem como sendo a verdade, significando que a outra é mentira”, disse Faggioli. “Há alguns católicos para quem o papa Francisco é tão ruim que eles acham que é melhor encarar a possibilidade de um cisma.”

O Vaticano respondeu procurando destacar a continuidade entre os dois papas. O diretor editorial do departamento de comunicações do Vaticano, Andrea Tornielli, argumentou que as respostas dos dois papas ao escândalo de abuso sexual são essencialmente “a mesma proposta”. Ele disse que a carta de Bento gerou “um debate instigante”.

Nos últimos anos, quando era incentivado por seus aliados conservadores, que se queixavam a ele durante visitas e queria que ele se manifestasse publicamente contra Francisco, Bento na maioria dos casos guardava silêncio e dizia apenas “oremos”.

Em cartas particulares que escreveu em novembro de 2017 a um cardeal alemão, um dos adversários públicos de Francisco, Bento essencialmente repreendeu o cardeal e pediu que ele parasse de criticar Francisco, por risco de desvalorizar o pontificado inteiro dele, Bento, e vê-lo “identificado com a tristeza em torno da situação atual da igreja”.

Mas a carta sobre abuso sexual assinalou uma mudança de postura. Quando Bento obteve permissão de Francisco para redigir a carta, que ele pretendia enviar a um periódico pequeno destinado a padres alemães, um complexo de mídia católica de direita financiado por críticos de Francisco se mobilizou para difundir a mensagem do papa emérito.

A Catholic News Agency, pertencente à emissora Eternal World Television Network, sediada nos EUA e palco frequente dos críticos de Francisco, postou online uma tradução ao inglês da íntegra da carta de Bento na madrugada de 10 de abril. O texto também foi entregue a outros veículos conservadores.

Sohrab Ahmari, colaborador do jornal conservador Catholic Herald, escreveu no Twitter que havia divulgado essa notícia para o mundo todo no New York Post, do qual é editor de opinião e editoriais. Ele se negou a informar como teve acesso ao texto.

Perguntado se deu o endereço do papa à mídia conservadora, como desconfiam muitos partidários de Francisco, Gänswein se negou a responder.

Para muitos católicos tradicionalistas e conservadores, para quem Francisco vem semeando confusão por afastar-se da ortodoxia, o enigma não foi como a carta saiu em veículos conservadores de todo o mundo ao mesmo tempo, mas por que ela não foi apresentada, como Bento parece ter pretendido, como um subsídio na cúpula extraordinária de líderes da igreja convocada por Francisco em fevereiro para discutir o problema do abuso sexual na igreja.

“Por que a carta não foi entregue aos bispos em fevereiro?”, perguntou Marco Tosatti, jornalista do Vaticano que recentemente ajudou o ex-embaixador do Vaticano nos Estados Unidos, arcebispo Carlo Maria Viganò, a redigir uma carta pedindo a renúncia do papa Francisco. “Essa é verdadeira pergunta.”

Tradução de Clara Allain.

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