Bolsonaro nunca se aprofundou no tema da segurança, diz especialista

[RESUMO]  Pesquisador classifica a plataforma de Bolsonaro para a segurança pública como superficial e lembra que o candidato, favorável à liberação do porte de armas, já defendeu grupos de extermínio.

 

Muitos analistas dizem que a força da candidatura de Jair Bolsonaro pode estar ligada ao medo do crime de parte da população. Dados das urnas após o primeiro turno, porém, parecem embaralhar esse diagnóstico. 

Um exemplo é a derrota do capitão reformado nos lugares que, na última década, tiveram maior crescimento na taxa de homicídios, caso dos nove estados do Nordeste e do Pará, onde o candidato do PSL perdeu para Fernando Haddad ou Ciro Gomes.

Se o medo do crime fosse uma das principais alavancas da candidatura, por que ele perderia onde há mais mortes violentas? A figura de autoridade do capitão, disposto a usar a força contra a degradação dos valores, parece seduzir mais. Até porque o candidato nunca demonstrou interesse em se aprofundar no tema da segurança pública com seriedade.

Poucas plataformas foram tão superficiais quanto a de Bolsonaro. O problema se repete em outras pastas, mas, na segurança, ele e sua equipe capricharam nos clichês.

Há pérolas populistas que parecem inspiradas em memes, como garantir ao policial o “excludente de ilicitude na realização de seu trabalho na rua”, dispensando investigação de eventuais excessos; reformulação do Estatuto do Desarmamento; redirecionamento das políticas de direitos humanos; redução da maioridade penal e endurecimento das penas, lotando ainda mais os presídios.

Sobre medidas para diminuir os homicídios —quase 64 mil no Brasil em 2017—, o programa de Bolsonaro se limita a elucubrações conspiratórias e associa o aumento dos assassinatos à ideologia esquerdista dos governadores dos estados mais violentos. Segue na mesma linha a análise que faz sobre facções, como se fossem um problema ligado às esquerdas, e não um efeito colateral dos erros das políticas de segurança.

Pode-se até argumentar que o debate sobre direito ao porte de arma, um dos pontos centrais do programa, seja válido em países com partidos liberais que defendem direitos individuais como princípio —entre eles, à legítima defesa.

No caso de Bolsonaro, contudo, a pregação vem junto com um discurso belicista da política, em que adversários são apontados como inimigos, além de estar sempre associada a sucessivas falas em defesa de ações extralegais da polícia e do extermínio de bandidos. Além de defender a ampliação do porte, ele insiste em armar os espíritos e pregar a guerra.

A condescendência com o descontrole sobre a violência policial, porém, já gera problemas concretos, como o fortalecimento das milícias no Rio. Esses grupos paramilitares, segundo o Ministério Público e a Polícia Civil fluminenses, tornaram-se o principal modelo de negócio do crime por ali e agem em 25% do território estadual, onde vivem 2 milhões de pessoas. Bolsonaro e seu clã, que têm reduto eleitoral no Rio, parecem não ligar para o tema. 

Flávio Bolsonaro, inclusive, quando era deputado estadual, em 2007, votou contra a CPI das Milícias e apresentou projeto para legalizar esses grupos. Já Bolsonaro-pai, numa entrevista em fevereiro ao programa "Pânico", da Jovem Pan, justificou a ação dos milicianos:

“Tem gente que é favorável à milícia, que é a maneira que eles têm de... De se ver livre da violência. Naquela região onde a milícia é paga não tem violência. Não é só na região, não. Você vai, por exemplo, em Madureira, aquele centro de Madureira tem muito comércio e pequenos shoppings ali. Quem paga em média 50 merréis por mês pra alguém daquela área, não tem arrastão no shopping dele”.

Bolsonaro chegou a defender, em 2003, na tribuna do Legislativo nacional, a ação dos grupos de extermínio.

“Desde que a política de direitos humanos chegou ao nosso país, cresceu, se avolumou e passou a ocupar grande espaço nos jornais, a violência só aumentou. A marginalidade cada vez mais tem se visto à vontade, tendo em vista esses neoadvogados para defendê-los. Dizer aos companheiros da Bahia que… Agora há pouco veio um parlamentar criticar os grupos de extermínio… Enquanto o Estado não tiver coragem para adotar a pena de morte, esses grupos de extermínio, no meu entender, são muito bem-vindos. Se não tiver espaço na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o apoio”, disse.

Essa figura tresloucada e sem freios na língua ou pudor para fazer apologia do crime se manteve irrelevante por mais de duas décadas como mais uma das excentricidades do baixo clero da Câmara. Os disparates que defendia eram capazes de chocar até mesmo os mais velhacos dos políticos da Nova República.

Algo profundo, no entanto, aconteceu para permitir que essa caricatura macabra do Parlamento nacional passasse a mobilizar adeptos, numa onda improvável que quase deu a ele a vitória no primeiro turno.

Os desdobramentos da crise política de 2014, acirrada com a Lava Jato, a recessão econômica, o impeachment de Dilma Rousseff e a chegada de Michel Temer e seus asseclas ao poder, todos esses fatos abririam as portas para o ingresso do anti-herói no palco principal da democracia brasileira.

Mas esses acontecimentos são insuficientes para explicar a transformação do deputado incendiário num líder de massas. O mito em torno do tirano emergiu como resultado de tensões que já vinham se aprofundando havia anos, longe dos holofotes da esfera pública.

Apesar das especificidades de Bolsonaro, a popularidade crescente de lideranças autoritárias não é uma aberração isolada da democracia nacional. Outras figuras com perfis semelhantes seduziram eleitores de países como EUA, Hungria, Turquia, Israel e Itália. Ainda houve o fortalecimento da extrema direita na Holanda, Suécia e Alemanha, sem mencionar a saída do Reino Unido da União Europeia.

Em todos os casos, os líderes souberam trabalhar com medos atávicos dos eleitores, relacionados ao aumento do número de imigrantes, à perda de emprego, à mistura de raças e de religião, como se esses países estivessem sob ameaça estrangeira. O chamado globalismo passou a perder cada vez mais espaço para os nacionalistas da nova direita.

No caso do Brasil, essa extrema direita passou a apontar o dedo para os comunistas, numa elaborada teoria com ares paranoicos que acabou dando subsídios a discursos de alguns dos líderes bolsonaristas. 
Os esquerdistas, conforme essa leitura da realidade, teriam se unido no Foro de São Paulo para promover uma revolução comunista na América Latina, sem violência, pela conquista da hegemonia cultural —a chamada revolução gramsciana. 

Essa esquerda já havia assumido o poder nas universidades, na imprensa e nas escolas e subvertia valores tradicionais via “ideologia de gênero”, valorizando a homossexualidade em detrimento da família, pelo ensinamento de ideologia marxista, pela entrega de territórios a índios e quilombolas e cedendo ao feminismo na defesa da descriminalização do aborto.

Essas ideias, elaboradas pelo filósofo Olavo de Carvalho, começaram a circular no fim dos anos 1990, pela internet. Ganharam adeptos numa bolha crescente durante os anos 2000, sobretudo na fase áurea dos presidentes de esquerda na América Latina. A retórica agressiva fez a cabeça de formadores de opinião.

Esses saberes da nova direita brasileira, formados longe dos olhos da intelligentsia, dialogavam com outro discurso ainda mais poderoso, que se fortalecia nas periferias. Sob a liderança de pastores neopentecostais e da teologia da prosperidade, ele se espalhou nos rádios e na TV por meio de comunicadores carismáticos que defendiam a tradição a partir de uma verdade sagrada.

Essa visão de mundo reacionária, que valoriza o passado e tenta frear evoluções nos costumes como o respeito às diferenças, emergiu com força para a superfície do debate público. A indignação com a corrupção e com os políticos e a ameaça da volta do PT ao Executivo foram trabalhadas com outros medos de ruptura da ordem. Era preciso resgatar a autoridade para evitar o caos. 

O PT, é inegável, contribuiu para o acirramento desse quadro com um discurso belicista, inspirado na visão marxista de revolução e luta de classes. Acabou se tornando o inimigo perfeito da nova direita.

Lula, além disso, depois da Lava Jato, poderia ser chamado de corrupto e presidiário. Mas a figura do retirante que migrou para o Sudeste e se tornou um dos principais símbolos políticos nacionais ainda provocava medo: a ameaça de transformar uma ordem estrutural que se mantém relativamente estável há mais de 500 anos.

Antes das eleições, os partidos ainda tentaram se manter no jogo político com perfis diversos de outsiders, como o ex-ministro do Supremo Joaquim Barbosa e o apresentador Luciano Huck. Como nenhum deles emplacou, a triste figura de Bolsonaro, o guerreiro disposto a usar a violência em defesa da ordem tradicional, acabou servindo para um eleitorado saturado e vulnerável.

Em vez de discutir programas para educação, saúde, ambiente e economia, o debate ocorreu em torno de valores, ideologia de gênero, Escola sem Partido e ataques à discussão sobre descriminalização do aborto e das drogas. O Estado, descrito como antro de corruptos, foi apontado como um entrave ao mercado. 

A facada em Bolsonaro ajudou a esvaziar ainda mais as discussões eleitorais. Mesmo recuperado, o candidato tem dispensado discutir suas ideias frente a frente com Haddad no segundo turno. Mais que projetos, o que importa é espalhar o medo.

A disseminação dessas ideias ganhou volume com o fortalecimento das redes sociais e a fragilização do jornalismo profissional. A narrativa sobre os fatos seria mais importante que os próprios fatos, abrindo um enorme corredor para a propagação de mentiras em grupos de WhatsApp. Nesta semana, a Folha revelou suspeitas de que empresários pró-Bolsonaro investiram ilegalmente em campanhas difamatórias contra o rival petista no aplicativo. 

Independentemente das consequências legais para a chapa, ao longo da campanha ficou evidente que, em vez de debater propostas, Bolsonaro se esforçou para criar confusão. Só assim as ideias simplistas e erradas do oficial bronco e incendiário pareceriam menos absurdas.

O resultado do ânimo do brasileiro foi revelado quando as urnas foram abertas no primeiro turno. Além de Bolsonaro quase ter vencido, o total de policiais para o legislativo saltou de 18, em 2014, para 73. Parecia que o eleitor estava dando um recado: em vez de políticos para mediar conflitos e buscar consensos, o ideal são guerreiros para combater inimigos.

Em vez da distopia totalitária descrita por Aldous Huxley em “Admirável Mundo Novo”, o futuro com Bolsonaro parece mais próximo de “Mad Max”: Estado enfraquecido, com grupos armados disputando o poder. 

O deputado nunca negou sua insatisfação com os limites impostos pela democracia e pelo Estado de Direito. Para ele, o monopólio do uso da força (parte da definição do Estado-nação moderno) surge como entrave à distopia armamentista que prega ceder o uso da violência ao “cidadão de bem” na luta contra os bandidos, mas também, se for o caso, na defesa de valores tradicionais da família, religião e propriedade.

Caso o Estatuto do Desarmamento seja flexibilizado, favorecendo a venda de armas a cidadãos com o espírito armado, haveria riscos de que essa retórica bélica da política ganhasse as ruas. Essa tensão já provocou agressões e até mortes ligadas a visões políticas divergentes antes da eleição do segundo turno.

A própria ambiguidade dos partidários de Bolsonaro em relação às milícias e às execuções é preocupante. A crise de homicídios, violência policial e presença de facções pode justificar a retórica em defesa da violência e do fortalecimento de grupos paramilitares, como ocorreu na Colômbia e no México diante dos cartéis de droga. Os paramilitares acabam tendo mais influência sobre políticos e são mais eficientes para infiltrar o crime nas instituições democráticas, como já ocorre no Rio.

A escolha para a Assembleia fluminense do candidato que quebrou uma placa com o nome de Marielle Franco na véspera das eleições mostra como o avanço paramilitar pode ocorrer com a condescendência de uma população acuada. A suspeita é de que a vereadora, assassinada em fevereiro, tenha sido morta por milicianos com a participação de membros da Câmara Municipal.

Caso os eleitores confirmem a opção por Bolsonaro no segundo turno, resta torcer para que o novo presidente esqueça tudo o que pregou como deputado nanico, assumindo papel de democrata. Se isso não ocorrer, será preciso contar com a capacidade e a solidez das instituições democráticas para preservar a lei e impor limites aos excessos.

Para o bem da democracia, a retórica belicista do guerreiro em defesa da tradição e da família, pronto para usar a violência contra inimigos, precisará ser aposentada. Caberá ao novo presidente se despir do mito e executar um programa de governo que, por enquanto, nem sequer foi apresentado à população. 

Bruno Paes Manso, doutor em ciência política pela USP, é jornalista e co-autor de 'A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil' (Todavia), com Camila Nunes Dias.

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