Aquecimento global faz prova de patinação mudar da Holanda para a Áustria

Antes do alvorecer, mil patinadores holandeses estavam congregados na superfície gelada do Weissensee, o lago longo e estreito que dá nome à cidade austríaca que sedia a prova. O céu estava escuro, e as lanternas que os patinadores enregelados carregavam em suas cabeças lançavam um brilho espiritual sobre o gelo preto como carvão. Os concorrentes foram alertados a não remover seus visores, para evitar que seus globos oculares se congelassem com o vento.

As condições, sob qualquer padrão razoável, eram brutais. Mas para os patinadores, a sensação era a de estarem no paraíso.

"A coisa mais bonita da vida é patinar em uma pista de gelo negro, no frio, ouvindo os sons da patinação em meio à natureza", disse Wim Wiltenburg, que trabalha em um banco e vive na cidade holandesa de Tilburg. "É melhor que sexo".

A patinação em gelo natural é um passatempo nacional muito querido dos holandeses. A tradição continua viva e passa bem - e não só na Holanda, onde a mudança no clima agora traz invernos quentes demais para que as vias aquáticas se congelem de forma consistente.

As consequências disso se fazem sentir de modo mais profundo em um evento histórico conhecido como Elfstedentocht, uma prova de um dia de duração que passa por 11 cidades da província holandesa de Friesland. A corrida tem lugar sagrado na cultura do esporte do país. O nome significa "volta das 11 cidades", e ela começou a acontecer casualmente no século 17, e de maneira mais formal desde 1909.

Cobrindo uma rota contínua de 200 quilômetros, a Elfstedentocht acontece apenas quando os lagos e canais de Friesland acumulam pelo menos 15 centímetros de gelo. Isso costumava ser comum; recentemente, se tornou muito raro.

De seu surgimento, em 1909, até 1963, a Elfstedentocht foi realizada 12 vezes. Depois disso, só houve três provas, a mais recente em 1997. Alguns dos moradores de Friesland duvidam que volte a acontecer em sua província.

Na última semana, a Elfstedentocht original passou por um marco preocupante: a sexta-feira (9) foi o 8.070º dia desde a edição passada da corrida, o maior período sem uma prova desde que ela foi concebida.

Mas os holandeses se recusam a permitir que o espírito da prova morra. Por isso, a cada inverno, cerca de seis mil cidadãos do país fazem uma peregrinação a Weissensee (população: 753). Migrantes climáticos do mundo do esporte, eles buscam o frio e o gelo do lago da cidade. Conhecida como Elfstedentocht Alternativa, a prova transferida foi abraçada pelos holandeses como uma rara oportunidade de patinar a mesma fatigante distância de 200 quilômetros que seus ancestrais faziam.

"No passado, nossos canais e nossos lagos estavam sempre congelados", disse Toine Doreleijers, uma dos organizadores da Elfstedentocht Alternativa. "Já não é mais assim, mas a prova continua em nosso sangue".

Os cientistas do clima holandeses apontam para o desaparecimento da Elfstedentocht como exemplo vívido das tendências graves que encontram em seu trabalho. De acordo com Hans Visser, estatístico da Agência Holandesa de Avaliação Ambiental, a probabilidade anual de que uma Elfstedentocht aconteça caiu de 26% em 1950 a 6,7% em 2017 (ou, em termos de períodos médios de retorno, de uma vez a cada quatro anos em 1950 a uma vez em cada 15 anos em 2017.)

Geert Jan van Oldenborgh, pesquisador do clima no Real Instituto de Meteorologia da Holanda, disse que se as temperaturas médias do planeta subissem em mais de dois graus ante o nível anterior à Revolução Industrial – um limiar que costuma ser citado para a ocorrência de efeitos severos da mudança do clima –, o mais provável seria que a Elfstedentocht deixe permanentemente de acontecer na Holanda (e, claro, haveria muitas outras mudanças bem mais catastróficas no meio ambiente).

"As probabilidades de uma Volta das 11 Cidades caem a cada ano, por conta do aquecimento global", disse van Oldenborgh. "Isso deveria ser um bom incentivo para que os holandeses façam algo a respeito".
Enquanto isso, a Elfstedentocht Alternativa na Áustria tenta atender ao anseio holandês por gelo. A pista de 12,5 quilômetros da prova do mês passado percorria um traçado labiríntico pelo lago, criando o que de longe parecia um movimentado formigueiro, com grupos de patinadores percorrendo o labirinto.

Os participantes tinham de percorrer 16 voltas, sempre de olho no gelo, que mostrava rachaduras longas e perigosas, como um mármore antigo. Eles se hidratavam e tentavam preservar calorias, apanhando fatias de pão com passas em suas muitas passagens pelas mesas de apoio à beira da pista. A idade dos competidores variava dos 14 aos 77 anos. Todo mundo começou a prova no escuro, e os últimos a conclui-la chegaram também no escuro, 11 horas mais tarde.

Eles tinham gelo nas barbas e cabelos. E houve muitas lesões.

Marieke Lassche, 59, fechou a prova com tempo de 9h53min11s. Professora em Ommen, no leste da Holanda, ela patinou na Elfstedentocht real de 1986, quando tinha 26 anos. Lassche disse apreciar a paisagem intocada de Weissensee, mas que sonhava patinar pela cacofonia de Friesland uma vez mais.

"Você começa em Leeuwarden, no escuro, mas a pista é iluminada pelos faróis dos carros, e há muita gente, música, diversas bandas", ela disse sobre sua experiência de 33 anos atrás. "Você entra na cidade e os torcedores gritam que você vai conseguir, e seus pés ganham asas".

Para alguns, a Elfstedentocht Alternativa – o evento principal é disputado quatro vezes em um período de duas semanas, a cada inverno, com provas de velocidade mais curtas e corridas entre profissionais realizadas nos intervalos – vem sendo uma maneira de treinar para a Elfstedentocht real, caso ela um dia volte a ocorrer.

Klasina Seinstra, 50, viaja a Elfstedentocht há 27 anos, primeiro como patinadora e agora como treinadora. Ela marcou o tempo feminino mais rápido na prova do lago austríaco em 1995, 1996 e 1997, antes de se tornar a primeira mulher a cruzar a linha de chegada na Elfstedentocht de 1997, a última realizada na Holanda. Ela diz que ainda se arrepia ao recordar a prova.

"Fico com lágrimas nos olhos", diz. "Jamais tive um sentimento como aquele".

Erben Wennemars, patinador de velocidade profissional, é obcecado por competir na Elfstedentocht verdadeira, um dia. Aos 43 anos, ele está mais ou menos aposentado da patinação, mas continua a competir algumas vezes por ano a fim de se manter elegível para a categoria profissional da prova.
Wennemars disse que a pureza da Elfstedentocht (a prova tem apenas alguns patrocinadores, e os vencedores não recebem prêmios em dinheiro) era um antídoto ao mundo "programado" demais da maioria dos esportes de elite modernos.

"Fui campeão mundial oito vezes, ganhei duas medalhas olímpicas, mas trocaria tudo isso pela Elfstedentocht", ele disse. "Há muita gente com medalhas de ouro. Mas vencer a Elfstedentocht torna o atleta conhecido pelo resto da vida".

A aura da corrida original - que envolve uma prova para profissionais e uma volta recreativa para amadores - ganhou ainda mais força nas décadas de ausência.

Por enquanto, os 10 voluntários que formam o conselho da Organização Real para as 11 Cidades da Frísia, que organiza a corrida, preparam cuidadosamente a prova a cada ano, como se ela fosse acontecer. Não há escolha a não ser estarem prontos. Os preparativos atuais se baseiam em uma estimativa de 30 mil patinadores e quase 1,5 milhão de espectadores, ao longo do percurso, e mais 20 milhões na televisão.

"Chegará o ano que compensará todos os anos que perdemos", disse Sytse Prins, um dos membros do conselho.

Wiebe Wieling, o presidente do conselho, disse que era cedo demais para começar a reduzir a escala dos preparativos anuais. Ele apontou que, mesmo com o aquecimento global, pode haver surtos de frio extremo que congelem os canais o bastante. "Mas, digamos, se não houver uma edição nos próximos 10 anos, talvez a discussão comece a mudar", ele disse.

Os patinadores holandeses estão impacientes, como seria de esperar.

O conceito de uma Elfstedentocht Alternativa surgiu na década de 1970, quando um empresário holandês chamado Aart Koopmans começou a procurar locais no planeta que oferecessem água congelada da forma que a prova requer. Reza a lenda que ele e outro dos organizadores, Leo van Hees descobriram Weissensee depois de ver Timothy Dalton dirigindo um Aston Martin sobre o lago em "007 - Marcado para a Morte", filme de 1987.

Dois anos depois, eles organizaram sua primeira prova de patinação de velocidade na superfície do lago.
Weissensee agora se tornou parada regular para muitos patinadores holandeses. No ano passado, a companhia de aviação Transavia criou um voo direto entre Roterdã e Klagenfurt, na Áustria, para ajudar a transportar os peregrinos. Na prova do mês passado, bandeiras nacionais holandesas pendiam das sacadas, e visitantes vindos da Holanda percorriam as estradas cobertas de neve em suas bicicletas.

Depois da segunda corrida do mês passado, centenas de patinadores, alguns dos quais vestidos de modo brincalhão em trajes tradicionais austríacos, foram a uma barraca montada à beira do lago para o Baile da Bolha, uma ruidosa festa com muita música, jatos de neve falsa e que contava com pelo menos quatro pessoas dançando com braços recentemente fraturados.

"Weissensee se torna holandesa por duas semanas", disse Gerhard Koch, 48, o prefeito da cidade.
Em meio a tanta patinação e festa, a pessoa mais importante no local talvez fosse Norbert Jank, 72, o morador de Weissensee que serviu como "mestre do gelo" em todas as 31 edições da Elfstedentocht Alternativa. Ele monitora as condições do gelo e prepara a pista, com um arsenal de ferramentas artesanais e veículos adaptados.

"Obrigado pelo ótimo gelo!", alguém gritou para ele em alemão com forte sotaque holandês, certa tarde do mês passado.

Jank respondeu com um aceno, e sorriu. O gelo estava de fato bom. Mas não tão bom quanto no passado, ele disse. Então, ele apontou, era sempre possível patinar em torno de todo o lago, mas agora apenas metade do lago oferece gelo espesso o bastante para permitir patinação. E Jank, que só usa um gorro ou luvas se a temperatura chegar a 25 graus negativos, vem percebendo cada vez mais dias quentes no inverno.

Isso é bem preocupante, ele disse.

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