A vida de quem não crê é mais solitária

Qual é a probabilidade de você romper um par de ligamentos no joelho e dois dias depois cair no banheiro de casa e arrebentar a mão de diversas formas? Calma, não acabou. Então, você sai pra almoçar com amigos e consegue enterrar na outra mão numa parte saliente da própria pulseira e fazer um talho. Para completar, perde a aliança de casamento que já foi da sua mãe. Tudo isso num espaço de cinco dias.
 
Tenho uma visão prática da vida. Acho que as coisas simplesmente acontecem. Há muito tempo não tento encontrar no sobrenatural explicação para imprevistos, desvios de curso, acidentes, fins de romance, demissão, fatalidade e tragédias. Da mesma forma, não me considero especial ou abençoada quando tudo dá certo. Não acho que haja conspiração ora divina, ora diabólica que interfira em nossas vidas. Tampouco acredito que um ser divino se distraia às vezes e nos deixe cair em sofrimento. Vitórias e derrotas, ligamentos rompidos e joias de família perdidas são parte da vida de qualquer um.

Mas para me consolar, uma amiga, na melhor das intenções, disse que “tudo acontece por um motivo”. Aquilo me pegou, porque eu estava frágil, me sentindo miserável e injustiçada. O que me fez tentar entender o que fiz exatamente para merecer estar na merda, toda estropiada, prestes a enfrentar uma cirurgia, ter machucado minha mão, meu segundo mais precioso instrumento de trabalho (o primeiro é o cérebro), e ainda perder um bem com valor sentimental incalculável.
 
Me foram dadas as mais diversas explicações. Como meu aniversário se aproxima, deve ser inferno astral. Já não basta ficar mais velha, os astros ainda nos reservam um período de pegadinhas para testar nossa maturidade e resiliência. Pode ser Mercúrio retrógrado, algo que tenho ouvido com tanta frequência, que me faz crer que esse planeta saiu do prumo e não acha nunca mais o seu lugar no universo. Pela gravidade e profusão de acontecimentos, uma leitora cravou: macumba. Diz ela que eu me exponho demais. Tentei argumentar que há milhares de pessoas que têm a vida muito melhor do que a minha, que eu não valho a galinha nem a cachaça do despacho.
 
Pode ser. Pode ser. Pode ser também que esse velho joelho, parceiro de tantas aventuras, já estivesse cansado e não tenha aguentado minha falta de destreza para pular uma cerca depois de duas caipirinhas. Pode ser que não tenha sido uma boa ideia tentar me equilibrar na perna machucada apenas dois dias depois e por isso eu me estatelei no chão do banheiro e quase quebrei a mão. Pode ser que eu devesse ter guardado melhor o anel que tirei do dedo inchado. Mas, como quer que eu creia, minha amiga, pode ser um aviso dos céus de que eu preciso parar. De que o ano foi pesado. De que preciso de férias.
 
Ter fé tem um lado maravilhoso. Não nos sentimos sozinhos. Ficamos mais otimistas e acreditamos que tem um batalhão de forças, de energias, de santos, de entidades, de deuses que nos ajudam a enfrentar a vida. Pode ser mais prático, mas a vida de quem não crê é muito mais solitária. Você sabe, ou pelo menos acredita, que tudo só depende de você e que não tem ninguém mexendo os pauzinhos para que o final seja sempre feliz ou tirando os obstáculos da frente pra que a gente não caia.
 
Hoje pela manhã, meu voo estava atrasado e com isso eu perderia a conexão em outra cidade. Pensei, olha aí, o Mercúrio retrógrado, o inferno astral, a macumba. Felizmente, ou por uma graça alcançada, vai saber, o outro avião também sairia mais tarde por causa de mau tempo. A única nuvem negra que pairava no céu era de chuva mesmo. Não tem essa de olho grande, de energia ruim, de planetas desalinhados. Lá vou eu. E enquanto andava no finger me dei conta de que vestia uma camiseta que dizia: meu santo é forte. Yo no creio em brujas, pero que las hay, las hay.

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