A tradição brasileira de trocar educação por trabalho precoce
Sim, já faz tempo, eu sei. Porém, precisava falar desse ponto porque ele é crítico para o país.
O presidente Jair Bolsonaro (PSL) levantou, semanas atrás, o debate sobre trabalho infantil. Como acontecera no passado, ele passou os últimos dias ora dizendo que não fora bem entendido ora reafirmando seu ponto. Enfim, aquele método que lembra a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir/Eu tô te confundindo pra te esclarecer”.
Na declaração original, o presidente disse que as pessoas normalizam o consumo de crack e se espantam com crianças lavando carros. Não sei muito bem com quem o presidente tem andado, mas nunca vi, li ou escutei alguém achando razoável um adolescente fumar um cachimbo de pedra. Pelo contrário. Mas, enfim, desconheço as companhias do presidente.
O fato é que o trabalho de crianças e adolescentes é uma realidade brasileira. Atualmente, há 1,5 milhão de pessoas em idade escolar fora das instituições de ensino. A necessidade de levar renda para casa é uma das principais razões pelas quais apenas 64% dos jovens concluem o ensino médio até os 19 anos.
A situação é melhor do que no passado porque a Constituição de 1988 transformou a educação em direito dos brasileiros. Ao longo das últimas décadas, a fiscalização cresceu e a rede de proteção aos menores também. Ainda assim, está longe de ser boa —e algumas situações ainda são invisíveis. Por exemplo, não sabemos quantas crianças deixam de se dedicar plenamente aos estudos porque precisam contribuir com os deveres de casa.
Quando li a declaração do presidente, fiquei imaginando por que raios ele levantou essa bola. O país tem milhões de desempregados e mais tantos milhões de desalentados, gente que simplesmente desistiu de procurar emprego porque não tem mais esperanças de achar. Entre os jovens, as porcentagens de desemprego e desalento são enormes.
Minha primeira hipótese é que foi uma declaração eleitoral. Afinal, o presidente vive em campanha. Assim, seria um aceno tanto para uma parcela das famílias pobres quanto para setores da classe média.
Ambas, por motivos diferentes, colocam os filhos para trabalhar. No caso das muito pobres, para trazer renda necessária à sobrevivência. No caso da classe média, especialmente as que possuem pequenos negócios, o trabalho tem um fator de preparação para o futuro, para tocar as iniciativas dos pais.
Ao defender o trabalho abaixo dos 18, o presidente está dizendo, na prática, “não se importem com o que a lei diz, o que importa é que estou do seu lado. Você está fazendo o seu melhor”.
A segunda hipótese é para reforçar uma polarização cara à nova direita. Para setores que apoiam o presidente, o mundo se divide entre trabalhadores (os bolsonaristas) e vagabundos (todos os outros).
Embora seja uma divisão artificial, sem base na realidade, ela serve para reforçar mensagens caras ao núcleo duro de fãs de Bolsonaro. Alimenta memes nas redes sociais e faixas nas manifestações de domingo, mas não ajuda a melhorar, efetivamente, a vida das pessoas. É pura fanfarra para quem ama o presidente.
A terceira hipótese é a mais problemática. Enquanto as duas primeiras pressupõem uma análise de Brasil ou uma visão eleitoral, a terceira é preocupante.
Bolsonaro não é conhecido pela precisão das suas falas. Confunde dados, mistura conceitos, erra fatos elementares sobre o país. Nada disso é novidade. Durante a campanha eleitoral, ele foi bastante honesto em dizer que desconhecia economia. E, por conta disso, ele disse que se cercaria de especialistas para tomar boas decisões.
A questão é que a cadeira presidencial fortalece convicções e aumenta a autoestima. Bolsonaro tem se sentido cada vez mais à vontade no cargo. E, ao que parece, ele tem se convencido que possui a verdade e a melhor visão para o país. Ele cita muito as suas experiências pessoais. No caso do trabalho infantil, fez questão de falar da infância com os pais.
E essa é uma questão bem delicada. Não se faz política pública com base na sua história de vida.
Obviamente, o passado do presidente vai influenciar as suas decisões, mas não pode ser o único critério. Bolsonaro, porém, parece ter a balança descalibrada. Ele gosta muito de algumas agendas e coloca toda a sua força presidencial nela. Por isso a recente obsessão com trabalho infantil é preocupante.
Se Bolsonaro tocar essa agenda com força, ele pode influenciar não apenas as políticas públicas em educação, mas principalmente a cultura do país. A mensagem de trabalho infantil legitima uma visão ainda disseminada em muito setores. Para alguns segmentos da população, escola é para quem gosta ou tem condições financeiras de estudar. Escola não é para todo mundo. A alternativa, portanto, é o trabalho – e quanto mais cedo, melhor.
O Brasil seguiu essa toada por quase 100 anos. Os resultados, como sabemos, nos legaram uma tragédia educacional que só a Constituição de 1988 teve coragem de enfrentar.
Se Bolsonaro realmente quiser melhorar a educação pública no país, ele deveria se cercar de conselheiros melhores. Educação não é brinquedo —e a palavra do presidente tem poder. Ao falar de trabalho infantil, ele pode ter mirado os inimigos, mas acabou acertando o filho do cortador de cana...