A perigosa mensagem de Donald Trump: dinheiro compra impunidade

Uma mensagem clara e perigosa foi enviada aos tiranos do mundo todo: ponham dinheiro suficiente na frente do presidente dos Estados Unidos e vocês poderão literalmente assassinar sem sofrer consequências.

Em uma declaração bizarra, imprecisa e prolongada --que serviu para lembrar por que o Twitter tem limitação de caracteres--, o presidente americano, Donald Trump, desculpou o brutal assassinato do jornalista Jamal Khashoggi pelo governo da Arábia Saudita.

No processo, Trump difamou um homem bom e inocente, chamando Khashoggi de "inimigo do Estado" --rótulo que nem mesmo os sauditas usaram publicamente--, enquanto proclamava ao mundo que sua relação com o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, de 33 anos, é importante demais para ser posta em risco pelo assassinato de um jornalista.

Quaisquer que sejam as objeções das pessoas por não darmos importância ao assassinato de Khashoggi, afirmou o presidente, elas não superam a receita (extremamente exagerada) que podemos esperar dos negócios de armas com a Arábia Saudita.

Para muitos em "The Washington Post", o assassinato de Khashoggi é um assunto pessoal. Ele era um colega respeitado, e sua perda é sentida profundamente. Mas também temos consciência de nossa missão de serviço público.

Quando as autoridades aqui em Washington abandonam os princípios que deveriam preservar --foi para isso que as pessoas as elegeram--, é nosso dever chamar a atenção para o fato. De nossa parte, continuaremos a fazer o possível para expor a verdade --fazendo perguntas difíceis e seguindo os fatos incansavelmente para trazer à luz provas cruciais. 

Durante toda esta crise, o presidente afirmou que está cuidando de nossos "interesses nacionais". Mas a reação de Trump não promove os interesses dos EUA --ela os trai.

Ela coloca o valor em dólares dos acordos comerciais acima dos tão cultivados valores americanos de respeito à liberdade e aos direitos humanos. E situa as relações pessoais acima das relações estratégicas dos EUA.

Há mais de 60 anos, a parceria entre EUA e Arábia Saudita é algo importante, baseado em confiança e respeito. Trump determinou que os EUA não exigem mais honestidade e valores comuns de seus parceiros globais.

A segurança, como salientou Trump em sua declaração, é um importante interesse americano. Mas nós não tornamos o mundo mais seguro ao impor um duplo padrão de diplomacia, sob o qual os EUA abandonam nossos valores por alguém que se ofereça para comprar nossas armas.

Nós não tornamos o mundo mais seguro ao abandonar nosso compromisso com as liberdades básicas e os direitos humanos. Sob o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, a Arábia Saudita cometeu atrocidades que, se perpetradas por outros países, causariam uma forte reação dos EUA.

Sua intervenção no Iêmen criou um desastre humanitário. Mulheres ativistas foram presas e brutalizadas simplesmente por exigirem o direito de dirigir. Líderes empresariais sauditas inconvenientes foram torturados dentro de um hotel Ritz-Carlton. O primeiro-ministro do Líbano foi sequestrado.

O príncipe real, na função há apenas 17 meses, comandou um reinado de terror e já estabeleceu um legado sombrio de oposição à liberdade de imprensa. Deixar de exigir responsabilidade por esses crimes não torna os EUA mais seguros.

As sociedades estáveis e pacíficas, governadas por líderes que respeitam os direitos de seus cidadãos, precisam de jornalistas que possam denunciar os erros e responsabilizar os poderosos. Não é coincidência que muitos dos piores inimigos da liberdade de imprensa no mundo são também os atores mais perigosos do mundo.

A CIA, Agência Central de Inteligência dos EUA, investigou minuciosamente o assassinato de Khashoggi e concluiu com alta confiança que ele foi dirigido pelo príncipe real. Se há motivos para ignorarmos as conclusões da CIA, o presidente deveria imediatamente divulgar essas evidências.

Na falta delas, e diante dessa falha de liderança de Trump, agora cabe ao Congresso realmente colocar a América em primeiro lugar defendendo os valores sagrados dos Estados Unidos e seus interesses duradouros. Como vimos pelo forte apoio de republicanos e democratas, esse não é um interesse partidário ou político; é um interesse americano.

O Congresso deveria exigir mais que bodes expiatórios e reprimendas leves. Deveria, sim, usar seus poderes de investigação e intimação judicial para pressionar por um inquérito independente e completo --não importa aonde ele conduza.

Ele deveria usar seu poder de controle de verbas e sua autoridade para regulamentar o comércio exterior, impor penalidades efetivas aos assassinos de Khashoggi e suspender a venda de armas fabricadas nos EUA aos sauditas.

Presidentes de John Kennedy a Ronald Reagan --e muitos outros antes e depois deles-- assumiram posições corajosas pelos direitos humanos e a liberdade de imprensa quando esteve em risco muito mais que a venda de armas. Por meio desses atos de liderança presidencial, o mundo soube que o poder dos EUA deriva dos princípios americanos.

No Dia de Ação de Graças, os americanos podem agradecer por vivermos sob uma Constituição que garante o regime da lei, mais que o governo de um homem caprichoso, e que permite que um ramo do governo corrija os erros de outro.

Somos eternamente gratos aos homens e mulheres corajosos cujo serviço militar há muito preserva esses direitos, e à coragem dos socorristas que estão lá para nos proteger quando desastres atingem o país. 

Também podemos agradecer por termos uma imprensa vibrante, protegida pela Primeira Emenda, que busca incansavelmente fazer que os poderosos prestem contas de seus atos. Podemos confiar que ela cumprirá essa missão no caso de Jamal Khashoggi. Essa busca por verdade e justiça é o que merece um homem inocente, brutalmente assassinado --e o que os valores dos EUA realmente exigem.

Fred Ryan é diretor editorial e executivo-chefe de "The Washington Post". Ele foi assistente do presidente Ronald Reagan

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves  

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