A necessidade de viver nossas dores

Há poucos anos perdi uma amiga para o câncer. Quando soube da notícia, levantei da minha mesa de trabalho, peguei minha bolsa e me dirigi ao velório. No caminho, recebo uma ligação do diretor da empresa onde trabalhava. Ele questionava minha ausência e a necessidade da minha ida ao cemitério.

Eu tinha acabado de perder uma amiga, estava devastada pela tristeza e me defrontei com um filho da puta, insensível, que acreditava que eu não precisava de um tempo para me despedir de uma pessoa amada. Não conseguia entender a simples necessidade de alguém de se sentir miserável e de sofrer em paz.

Não sei quando foi que as coisas tomaram esse rumo, mas o pior é que nos convencemos de que perda, morte, fim de relacionamentos, decepções, frustrações, e até mesmo doenças são problemas menores que precisam ser enfrentados com a praticidade com a qual resolvemos nossa vida doméstica. Coloca tudo em débito automático e não se preocupe mais com nada.

Não vivemos mais nossas dores porque a vida, com todas as suas atribuições, nos atropela com suas urgências. E o mundo está cheio de gente cruel e sem coração que nos convence de que não há outra forma. Com frequência a gente pega sentimentos como revolta, negação, raiva, tristeza, perda, falta, choque, desamparo, e soca bem socadinho no fundo do coração, toma uma banho frio e volta para a rotina se arrastando por dentro, com a alma amassada, mas com a coluna reta e as metas atingidas.

Tanto faz se não estamos em dia com as nossas angústias e nossas feridas. Não sofremos mais, não deixamos que o ciclo dos nossos sofrimentos se complete, que as cicatrizes fiquem sequinhas e bem fechadas para que voltar a viver não seja um tormento diário. O mundo em nossa volta, muitas vezes, faz de conta que perder um familiar, terminar um relacionamento, ser demitido do emprego, são apenas episódios corriqueiros que devem ser superados rapidamente.

Nesse mundo digital em que todos são felizes e perfeitos me causou desconforto enorme ver uma blogueira que desfilava seu relacionamento perfeito nas redes diariamente, desfazer o compromisso, apagar todas as fotos e agir como se nenhuma lágrima tivesse sido derramada por aquela ruptura. Cada amor desfeito levou de mim uma parte da alegria da qual fui feita. Lembro de ficar horas na cama, em posição fetal, com uma dor tão profunda, que parecia impossível voltar a respirar sem que o coração doesse.

Defendo que as empresas tivessem uma espécie de licença-coração-partido, para que as pessoas tenham alguns dias para sofrer, chorar e odiar a vida, antes de voltar e fazer de conta que não se importam. Mesmo que queiram nos convencer do contrário, sofrer por amor é das dores mais insuportáveis e difíceis de lidar. É preciso respeitar as aflições do traído, do largado.

Dias atrás, tive uma intoxicação alimentar tão terrível em que abracei a privada com amor e ódio durante três dias. Ao menor sinal de recuperação, olhava com desespero para minha agenda de trabalho para checar o que conseguiria dar conta sem causar muitos danos ao meu cronograma. Como se o fato de estar doente, e eu estava muito doente, me fizesse menos profissional, menos capaz, menos digna da confiança que haviam me dado. Sofri com o piriri e com o julgamento, que era muito mais meu do que de terceiros. Até que me dei conta de que as cobranças me deixavam ainda pior. 

Poderia ser só salmonela, mas talvez fosse estresse, estafa mental, um sinal claro de pedido de socorro. Consegui ser menos louca por alguns minutos, deixar o celular de lado, fechar a cortina do quarto, dormir horas e horas seguidas e só, então, colocar o nariz para fora do meu mundinho particular quando o corpo já estava num ritmo tão sóbrio quando a cabeça. O mundo pode esperar, o que não pode é a nossa sanidade. A gente precisa respeitar nossas dores para que a vida não nos deixe mais doentes.

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