A metamorfose de W.

"O livro do Kafta" que o ministro da Educação citou terça-feira (7) em audiência no Senado apresenta um desafio interpretativo considerável. No entanto, à primeira vista o caso parece bastante simples. 

Uma autoridade comete uma gafe. Os críticos riem e saem espalhando a notícia nas redes com sádico deleite: "Viram que formidável?" Os apoiadores rebatem: "Seus oportunistas esnobes, foi só uma gafe".

No caso, o deslize de Abraham Weintraub foi puro pastelão, uma troca de letras infantil e boba de tão óbvia. Quem nunca se deu conta da semelhança entre o nome do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) e o do acepipe árabe? Quantos de nós, logo após pensar nisso, descartamos o trocadilho como tolo demais para merecer um enunciado?

Até este ponto o caso conserva sua aparente simplicidade binária. Dizem os governistas: tropeço banal, o cara estava nervoso, pode acontecer com qualquer um. Não é bem assim, insistem os gozadores. Convém lembrar que Weintraub é —pois é— ministro da Educação.

Aí a trama começa a se adensar. Se há inegável malícia e talvez até maus modos no riso fácil com um escorregão desse tipo, o ministro não pode fugir às responsabilidades do cargo. Não poderia em lugar nenhum do mundo, que dirá num país que vai definhando à míngua de educação, como no sertão nordestino definham lavoura e criação por falta de chuva.

A cadeira ocupada por Weintraub exige um estofo mínimo. Seria ridículo sugerir que os titulares da pasta, sobretudo nos últimos tempos, foram todos pessoas de excelente formação. Contudo, é fato que nenhum deles "insitou" o público a ler cafta ou comer Kafka, nem passou as verbas do ensino pelo moedor de carne. Entre o imenso Paulo Freire e o mais despreparado dos professores, estende-se um rico leque de possibilidades.

Não se trata de esnobismo intelectual. Kafka é um dos raros escritores que fazem parte do repertório cultural médio da sociedade. Nesse quesito, é o mais bem-sucedido do século 20, léguas à frente de Marcel Proust e James Joyce.

Ou seja, para citar Kafka ninguém precisa tê-lo lido nem sequer saber por alto quando ou em que região do mundo ele viveu. "Kafkiano", adjetivo da linguagem comum, quer dizer o que "evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo, especialmente em um contexto burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade" (Houaiss). 

Na mosca. Weintraub se referia ao processo administrativo que sofreu na universidade, comparando-o à burocracia insondável do genial romance "O Processo". Para isso não precisaria —ninguém precisa— ter lido o livro. Kafka é figurinha tão fácil quanto o árabe da esquina.

E ainda não falamos da barata, que nem barata era. O "monstruoso inseto repulsivo" em que Gregor Samsa acorda transformado, na também genial novela "A Metamorfose", nunca é nomeado direito. Pela descrição, parece estar mais para um besourão, talvez um rola-bosta. Em todo caso, foi a barata que ficou na cabeça de todo mundo. Figurinhas fáceis são assim.

Eis por que apontar o erro do ministro é o oposto de esnobismo intelectual. Digamos que, sendo formado em economia, uma das poucas ciências humanas que sua turma não teme e execra, ele nem precisasse ter lido Kafka para estar no cargo. Por que, então, tentar passar pelo que não é? 

Ao acordar certa manhã de sonhos intranquilos, Abraham Weintraub se viu transformado em sua cama em ministro da Educação. Kafkiano, bicho.

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