A luta do Ministério da Educação contra a realidade

O Ministério da Educação não me dá uma coluna de folga. Eu estava com vontade de escrever sobre a Débora Garofalo, professora da cidade de São Paulo. Ela está entre as dez melhores professoras do mundo e é finalista do Nobel da Educação.

Também tinha um texto quase pronto sobre o Fundeb e por que, sem ele, as escolas podem ficar sem dinheiro. Nos meus rascunhos, havia um texto bem encaminhado sobre educação inclusiva e a febre dos laudos nas escolas.

Alguns dias atrás, o ministro mandou uma mensagem às escolas pedindo que o hino nacional seja entoado pelos alunos. Além disso, solicitou que os alunos fossem gravados. Também convidou os diretores a ler uma carta dele, ministro, aos alunos. A carta terminava com o slogan da campanha presidencial de Jair Bolsonaro e com uma menção aos novos tempos…

Enfim, dois dos três itens da requisição de Brasília são ilegais. Filmar crianças e adolescentes sem consentimento dos pais e responsáveis é vetado pela legislação. Usar a máquina pública para fazer a população recitar slogan de campanha é proibido pela Constituição —e deve render uma senhora dor de cabeça a Vélez Rodriguez.

Só o hino está dentro da lei. A regra foi colocada no ordenamento jurídico brasileiro em 1971 e, como não pegou, entrou de novo em 2009. Igualmente, sem sucesso. 

A nova trapalhada do MEC é grave, mas não necessariamente pelos efeitos. Eles tendem a ser nulos. A lambança é preocupante pelo que traz à tona. Se Vélez Rodríguez acha que vai mudar a cultura escolar por email, estamos feitos. Vamos por partes.

O ministério não tem a lista atualizada dos endereços (eletrônicos e físicos) de boa parte das escolas brasileiras. Provavelmente, centenas, talvez milhares de mensagens, tenham voltado aos servidores do MEC. Nas bases de dados, muitas escolas aparecem com emails como XXX@hotmail.com, localizadas na Rua 1, número 2.

Se Vélez Rodriguez quer deixar um legado real para a educação brasileira, poderia negociar com Paulo Guedes e fazer um censo escolar profundo, detalhado. Também poderia investir em tecnologia, para tornar a atualização dos dados mais fácil. Ah, essa também é uma boa oportunidade de fazer uma parceria com estados e municípios, responsáveis pela pujante maioria dos estabelecimentos de ensino do país. Mas provavelmente isso não vai acontecer tão cedo. 

Ao atropelar os secretários estaduais e municipais de educação com essa medida, o MEC armou uma cilada para si mesmo. Primeiro, irrita as pessoas responsáveis por colocar a máquina da educação para funcionar. Sem parceria com as administrações locais, nada acontece, como bem sabem as pessoas que sentaram na cadeira antes de Vélez.

Segundo, o ministro entra numa embaraçosa contradição. O ministério prometeu mais Brasil e menos Brasília nas escolas. Sua mensagem aos diretores é Brasília na veia.

Por fim, mostra ignorância administrativa. O MEC não manda nas escolas do país (exceto na ínfima parcela sob administração federal). A mensagem do ministro pode ser solenemente ignorada —exceto se ele usar a punição prevista pela lei de 1971 e sair processando e multando milhares de escolas Brasil afora. Se ele resolver ir por esse lado, multando os gestores, boa sorte. As escolas públicas vão (metaforicamente) pegar fogo. 

Para terminar, a guerra ao mundo real. O ministro provavelmente sabe que não se produz patriotismo por decreto. Parte do seu desejo, a cantoria, só vai virar realidade se vier acompanhada de pesada (e cara) fiscalização estatal.

Espero que isso não esteja na lista do governo. Porque, mesmo que o governo dê um jeito de colocar a PM para fiscalizar hino nas escolas, as pessoas não vão aceitar essa imposição tão facilmente. O mais provável é que o tiro saia pela culatra, criando aversão ao canto nacional. 

Aliás, se quiser ver o resultado de leis que obrigam a entonação do hino, convido o ministro Vélez Rodríguez a ver um jogo nos estádios de futebol Brasil afora. Neles, a obrigatoriedade foi levada para outro patamar.

Em alguns estados, além do hino nacional, é mandatório executar o hino estadual. Na maior parte das arquibancadas, ninguém canta. E, quando a torcida é bem humorada, o hino é atropelado. Se o ministro tivesse perguntado ao presidente Jair Bolsonaro, ele poderia ter dado a dica. No estádio do Palmeiras, por exemplo, ninguém canta o “Ouviram do Ipiranga”. A letra foi substituída por “Palmeiras, meu Palmeiras, meu Palmeiraaaaaaasss”. Bolsonaro esteve no estádio recentemente e ouviu. 

Invertendo um velho ditado, deixo uma sugestão para o ministro e para a sua equipe: às vezes, é melhor passar vontade do que passar vergonha. Até porque a realidade, nua e crua, vai bater na porta.

O maior ato de patriotismo que um ministro da educação pode ter é encarar a vida como ela é, gastando as melhores horas do seu dia em temas como aprendizagem dos alunos, valorização dos professores e infraestrutura das escolas. É pedir muito?

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