A bancada dos brancos raivosos

Quando Matt Damon imitou Brett Kavanaugh em "Saturday Night Live", antes mesmo que ele abrisse a boca já estava claro que seu desempenho seria perfeito. O importante era o rosto dele –aquela careta desdenhosa, repleta de raiva. Na semana passada, Kavanaugh não soou como um juiz em uma audiência no Senado, quanto menos um possível juiz da Suprema Corte; ele não conseguia nem mesmo parecer um juiz.

Mas Lindsay Graham, que passou toda a audiência fazendo mais ou menos a mesma careta, tampouco parecia muito um senador.

Houve muitos estudos sobre as forças que propelem o apoio a Trump, e especialmente sobre a raiva que é um traço tão onipresente no movimento MAGA [Make America Great Again, recuperar a grandeza da América]. O que a audiência da quinta-feira deixou claro, porém, é que a raiva branca não é algo que afete apenas operários em suas conversas de bar. Também está presente em pessoas que se saíram muitíssimo bem na loteria da vida, e que normalmente são consideradas como parte da elite. Em outras palavras, ira e alta renda podem caminhar juntas, e muitas vezes o fazem.

A esta altura existem provas esmagadoras contra a hipótese da "ansiedade econômica" –a ideia de que as pessoas votaram em Donald Trump porque a globalização as prejudicou. Na verdade, pessoas que se saem bem financeiramente mostram probabilidade tão grande de apoiar Trump quanto pessoas que não vão tão bem assim.

O que distingue os eleitores de Trump é, principalmente, o ressentimento racial. E esse ressentimento é causado não por perdas econômicas reais que tenham beneficiado grupos minoritários, mas pelo medo de perder status em um país que está mudando, e no qual os privilégios de ser homem e branco já não são tão grandes.

E o ponto é esse: é perfeitamente possível que um homem leve uma vida confortável, de fato invejável, sob qualquer padrão objetivo, e ainda assim seja consumido pela amargura, causada por ansiedade quanto ao seu status.

Você talvez imagine que isso é impossível, que ter um bom emprego e uma vida confortável deveria bastar para vacinar uma pessoa contra a inveja e o ódio. Ou você poderia pensar assim se não conhecesse coisa alguma sobre o mundo e a natureza humana.

Passei toda a minha adulta nos rarefeitos círculos acadêmicos, nos quais todo mundo tem boa renda e excelentes condições de trabalho. Mas sei que muita gente nesse mundo vive fervilhando de ressentimento, porque não está em Harvard ou Yale, ou, se está em Harvard ou Yale, vive ressentida ainda assim porque não recebeu um Prêmio Nobel.

E essa espécie de ressentimento de elite, a ira de pessoas altamente privilegiadas que ainda assim sentem não ter privilégios suficientes, ou que seus privilégios podem estar sendo erodidos pelas mudanças sociais, permeia o movimento conservador moderno.

Tudo começa pelo topo, é claro, com o maior dos ressentidos, Donald Trump. Seria de imaginar que um sujeito que mora na Casa Branca não sentiria mais a necessidade, por exemplo, de mentir sobre seu histórico acadêmico. Mas Trump não recebe o respeito que ele tão evidentemente deseja.

De fato, parece evidente que sua jihad contra Barack Obama foi movida pela inveja. Obama é negro e sempre foi uma pessoa de classe, dotada da graça e da postura que faltam a Trump. E Trump não suporta esse fato.

Kavanaugh é claramente farinha do mesmo saco, e não só por compartilhar da propensão de Trump a mentir sobre as grandes e sobre as pequenas coisas.

Como mostram muitas reportagens, o rosto zangado que Kavanaugh apresentou ao mundo na semana passada não era algo de novo, causado pelas acusações sobre abusos que teria cometido em seu passado. Colegas dele na Universidade Yale o descrevem como belicoso e beberrão já naquela época. Um memorando que ele escreveu ao [procurador especial] Ken Starr, a quem ele ajudou a perseguir Bill Clinton e no qual ele declarava que "é nossa tarefa expor seu padrão revoltante de comportamento", mostra raiva, além de cinismo.

E Kavanaugh, como Trump ainda tem o hábito de embelezar seu histórico acadêmico, mesmo depois de tantos anos, afirmando ter entrado em Yale apesar "de não ter pistolões". Na verdade, o fato de seu avô ter estudado lá certamente facilitou sua admissão.

Meu palpite, aliás, é que essas raízes privilegiadas são o verdadeiro motivo de sua raiva.

Quando estudei em Yale, eu convivia principalmente com os nerds, mas conheci pessoas como Kavanaugh - filhos do privilégio que passavam o tempo todo na farra e contavam com suas conexões para isolá-los contra qualquer consequência de suas ações, o que inclui seu comportamento para com as mulheres. E esse tipo de privilégio continua a existir, para a elite.

Mas é um privilégio que está sob ataque. Uma sociedade cada vez mais diversa já não aceita o direito divino dos homens brancos das famílias certas a comandar as coisas, e uma sociedade em que existem muitas mulheres empoderadas e com nível educacional elevado está enfim rejeitando o droigt de seigneur no passado conferido aos homens poderosos.

E nada causa mais raiva a um homem acostumado ao privilégio do que a perspectiva de perder parte desse privilégio, especialmente se vier acompanhada pela indicação de que pessoas como ele estão sujeitas às mesmas regras que os demais de nós.

Assim, o que tivemos na semana passada foi um vislumbre da alma do trumpismo. Não é "populismo" - seria difícil encontrar um juiz mais hostil aos trabalhadores do que Brett Kavanaugh. O que importa é a raiva dos homens brancos, de classe alta e de classe trabalhadora igualmente, que percebem uma ameaça à sua posição privilegiada. E essa raiva pode destruir os Estados Unidos na forma pela qual o conhecemos.
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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